29/10/2008

crónica de nada

Abro a janela que diz "nova mensagem" sem fazer ideia do que vou escrever. Alguma coisa há-de vir. Assim como quando se deixam janelas abertas na vida. Entra o que é bom e o que é mau. Tenho azougue, sabem o que é? No meu alentejo é íman. E eu tenho-o para certas coisas que me entram pela janela sem pedir licença.
Por isso, para me distraír, para fingir que não as vejo, escrevo coisas que não interessam a ninguém, como quem pinta por cima de uma parede suja.
Ontem à noite sentei-me na mesa da cozinha a organizar talões de compras e extractos bancários atrasados desde Julho. E falei com o Hugo, o meu gato. Ele ía-me respondendo com miaus, ía subindo para o meu colo, ía brincando com a medalha do meu fio. Depois deixou de me responder. Parei o que fazia e fui procurá-lo. Tinha ido aninhar-se dentro da minha mala, sim, que eu uso malas enormes, malotes diz a minha amiga e parceira de projectos bloguísticos. Sorri-lhe. Ao gato. Achei piada ao ninho. Todos precisamos de um ninho, de um esconderijo ou de um porto de abrigo. Cada um deita mão ao que pode.
Como a mulher, sessentona, que hoje viajou a meu lado no autocarro. Ia a ouvir música no telemóvel, sem phones. Toni Carreira, ou coisa que o valha. E ía cantando baixinho "ó-ó-ó-ó o teu beijo..." Era o ninho dela, suponho. Não se importou que a olhassem de lado, que uns se mostrassem incomodados e que outros se rissem. Era o seu ninho. Todos precisamos, não é?
Eu escrevo e na escrita não incomodo ninguém, ao contrário de quando abro a boca e aborreço toda a gente com lamúrias, queixas, cobranças. Escrevo e enquanto escrevo estou mais leve, estou longe, tantas vezes posso até ser outra, e sendo outra não me importo com o que entra pela janela.
Queria que me saísse o totoloto. Para a minha mãe deixar de trabalhar. Para não temer pelo futuro da minha filha. Para pagar a minha casa. Para ir viajar este fim de semana, para longe, sem outro destino que não fosse a distância, a lonjura, o refúgio.

1 comentário:

Unknown disse...

Crucificada

Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
- Hei-de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei-se poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém,

E depois... Ah! Depois de dores tamanhas
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!

Florbela Espanca